Escrito por Tião Maia (Especial para o Página 20)
13-Fev-2011 Emanuela Firmino, filha de “Baiano”, propõe o pagamento de uma pensão ao que restou da família
O questionamento do pagamento de uma indenização ou de outra compensação financeira à família de “Baiano”, que ainda hoje vive refugiada em algum ponto do país, vem sendo feito pela filha mais velha da vítima. Emanuela Oliveira Firmino, hoje com 30 anos de idade, parte do princípio de que o governo do Acre deve uma indenização financeira a sua família porque as pessoas que mataram seu pai e seu irmão, algumas já condenadas pelo Tribunal do Júri Popular da Comarca de Rio Branco, como é o caso de Hildebrando Pascoal, eram agentes públicos e estavam a serviço do Estado. Hildebrando Pascoal pegou 18 anos de prisão por esse crime.
O procurador de Justiça Sammy Barbosa se mostrou favorável ao pagamento da pensão Sammy Barbosa, ao ser informado da pretensão de Emanuela Firmino, disse que a proposta tem sentido e está amparada por leis brasileiras e internacionais que tratam da proteção aos direitos humanos. De acordo com o procurador, a corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual o Brasil é filiado e signatário, protege a pretensão de Emanuela. É com base nessas leis que o governo brasileiro vem pagando pensões às vítimas da ditadura militar, principalmente àquelas que sofreram torturas.
“Sou favorável a essa pretensão - e falo como procurador-chefe do Ministério Público do Acre e como promotor que atuou no caso - porque a violência que sofreu essa família, e num nível absurdo, é algo que precisa ser reparado, principalmente porque os agressores dessa família, em sua maioria, eram agentes do Estado”, disse Barbosa. “Eram pessoas que faziam parte da estrutura do Estado, inclusive parlamentares. Além disso, para capturar e submeter essas pessoas, pai e filho, à barbaridade das torturas que eles sofreram, foi utilizada inclusive o aparato de segurança do Estado.”
No julgamento em que foi condenado a 18 anos de prisão pela morte de “Baiano”, os promotores pediram o pagamento de uma indenização, por Hildebrando Pascoal e demais acusados, no valor de R$ 500 mil, à família de “Baiano”. O pagamento de indenização no Direito Penal, inclusive em crimes contra a vida, é um princípio novo e que não vem alcançando os objetivos proposto pela legislação. Um exemplo é o caso do próprio Hildebrando, que já não dispõe de nenhum bem em seu nome. Mesmo se condenado a pagar pesadas indenizações, ele não tem dinheiro para isso. Todo o seu patrimônio – fazenda, gados, joias, imóveis – está em nome de Rosângela Nogueira, casada com Hildebrando há 30 anos e da qual ele se separou consensualmente há um ano e meio. “Foi tudo armação para que ele não pague mais advogados nem indenização com o patrimônio acumulado”, disse um advogado com especialização em direito de família. “Ele se separou de dona Rosângela só no papel.”
PERITOS do Distrito Federal atestam que cortes foram feitos com motosserra Se isso for verdade, o pagamento dos R$ 500 mil como indenização pela morte de “Baiano” e de seu filho, no caso de Hildebrando, há de se tornar uma sentença inexequível. É nesse sentido que ganha cada vez mais relevância a pretensão de Emanuela Firmino de que o Estado, e não Hildebrando, deve a sua família o pagamento de uma indenização ou pensão.
“Não vejo abrigo no pagamento de uma indenização. De uma pensão, sim. Mas isso só deve ocorrer quando todo o processo transitar em julgado, quando não houver mais nenhum recurso sobre o caso”, disse Sammy Barbosa. “Depois disso, o Ministério Público pode se manifestar ao Poder Executivo, que toma a iniciativa junto à Assembleia Legislativa e aí, sim, essa família que tanto sofreu pode vir a receber um benefício do Estado.”
“É humilhante viver num país onde a vida das pessoas mais pobres não vale nada”
Ela tinha 15 anos quando viu seu pai e irmão pela última vez. Morava numa casinha acanhada na periferia de Rio Branco quando, de repente, na noite do dia 30 de junho, viu um bando de homens, uns fardados outros não, entrarem em sua casa. Primeiro, levaram sua mãe, Evanilda; depois, seu irmão Uilder, então com 13 anos.
Só no dia seguinte, ao reconhecer o corpo do pai sem braços, pernas e outros membros e ao saber que o cadáver de seu irmão havia sido encontrado com sinais de que havia sido embebido em ácido sulfúrico, ela compreendeu que sua família estava vivendo um terrível pesadelo. Com ajuda de familiares que viviam fora do Acre, Emanuela, sua mãe e o irmão sobrevivente da tragédia, Eder, então com 12 anos, conseguiram escapar da fúria dos executores e saíram do Acre. Só agora, 15 anos depois, ainda vivendo com medo e escondida, Emanuela, agora convertida à condição de líder do que restou de sua família, vem a público para falar sobre o assunto.
- Vocês acham que têm direito ao pagamento de uma indenização ou de uma pensão pela violência sofrida por parte do deputado Hildebrando Pascoal e de seus homens?
Emanuela - Como já falei em outras oportunidades, inclusive lá no julgamento dos assassinos do meu pai e do meu irmão, nós queremos somente que o Estado e o governo do Acre nos indenizem por tudo o que passamos. Queremos ser indenizados não somente porque os assassinos eram servidores públicos e mesmo assim cometeram esses dois brutais assassinatos, mas, pior ainda, porque o Estado que os contratou é o mesmo que nos negou apoio quando mais precisávamos.
- Como foi isso?
Emanuela - Na noite que prenderam meu pai e sequestraram meu irmão em nossa casa, minha mãe saiu comigo e meu irmão menor correndo pela rua, desesperada, pedindo apoio. Como já contei, ninguém quis abrir a porta para nós. Não tínhamos dinheiro para pegar um táxi e minha mãe conseguiu que um motorista nos transportasse para um local que não sei onde é pelo preço de um relógio caro que ela tinha ganhado de presente do meu pai. Passamos a noite refugiados num banheiro imundo e só conseguimos sair de Rio Branco com ajuda da nossa família que morava fora do Acre, quando já sabíamos que meu pai e meu irmão haviam sido mortos daquela maneira.
AGILSON Firmino e Evanilda durante a cerimônia de um casamento que duraria 16 anos - E por que você responsabiliza o Estado e o governo do Acre por isso?
Emanuela - Porque, além de terem sido agentes do Estado que fizeram aquilo com meu pai e meu irmão, o Estado e o governo, através de suas forças de segurança, nos negaram qualquer tipo de apoio. Quanto mais nós pedíamos socorro, mais nos negavam. Imploramos pelo amor de Deus que as autoridades nos ajudassem e a própria polícia dizia que ‘com a família Pascoal ninguém se metia’. Nós estávamos desesperados, em pânico, com muito medo de morrer, e a única coisa que nos diziam era para não retornar em casa e que não poderiam fazer nada pela gente.
Emanuel - Pena talvez, mas ajuda não tivemos nenhuma, nem de pessoas nem do Estado. E éramos mesmo dignos de pena porque, naquele momento, éramos uma mãe com medo não só de morrer mas também de perder as duas únicas coisas que lhe restaram: seus dois filhos. E nós - eu e meu irmão Uelder - também não só tínhamos medo de morrer como o nosso irmão assim como também de perder nossa heroína naquele instante, a nossa mãe.
- Ela foi, de fato, uma heroína na luta para salvar vocês dois. Como se deu isso?
Emanuela - Minha mãe também esteve à beira da morte, como meu pai. Ela chegou a ser levada por policiais militares para o quartel da Polícia Militar e só por um milagre de Deus foi liberada e pôde voltar em casa para salvar a mim e meu irmão menor, já que meu irmão Uilder já havia sido sequestrado. Se minha mãe não tivesse voltado do quartel naquela noite, certamente eu e meu irmão também estaríamos mortos porque, como nós dois iríamos ficar naquela cidade, sem parentes, sem amigos, sem conhecer nada e com todo um aparato de segurança atrás da gente?
- Mas, ao que consta, vocês receberam algum tipo de ajuda para sair de Rio Branco, não foi?
Emanuela - Na verdade, a única pessoa que nos ajudou foi uma senhora humilde e corajosa, e nem seu nome eu sei, que, mesmo sabendo dos nossos problemas e com quem estávamos lidando, abriu a porta de sua casa e nos deixou ficar até quando partimos de Rio Branco.
- Como você reage às provocações de que, ao propor uma indenização ou pagamento de uma pensão, sua família está apenas querendo tirar proveito dessa tragédia?
Emanuela - Isso é coisa de gente maluca, de gente que não respeita a dor dos outros. Algum maluco andou comentando isso, mas não nos atinge. Particularmente, dinheiro não me interessaria se meu pai e meu irmão estivessem aqui. Mas o que ocorreu foi muito grave. Por isso, acho que não só eu, mas toda a minha família merece que o Estado possa arcar com tudo que fizeram contra a gente. Dinheiro não ira trazer meu pai e o Uilder de volta, mas, pelo menos, poderia oferecer um pouco de descanso a minha mãe e a minha avó, mãe de meu pai, que vive doente desde que soube da forma como seu filho foi morto e que hoje já nem consegue andar. Eu não luto só por mim. Lutarei por essas duas mulheres e pelo meu irmão.
- Você trabalha, estuda... ?
Emanuela - Não quero entrar em detalhes sobre a minha vida, mas posso garantir que eu e meu irmão trabalhamos, estudamos e vivemos dignamente. Mas eu vou lutar pela minha avó, que era ajudada por meu pai e que desde sua morte não tem quem faça nada por ela, porque minha família, e minha mãe principalmente, não mereciam passar por tudo o que passaram. Posso dizer que a dor da minha família, apesar do tempo, ainda não passou. Minha mãe é uma mulher triste, doente, acabada. Não esqueçam os meus críticos que minha mãe perdeu o marido que amava e um filho de 13 anos que era o mais apegado a ela. Ele não desgrudava dela a não ser para jogar videogame! Ela sofre calada. Não diz nada a mim porque sabe que sou revoltada com a nossa situação e sabe que cada dia que passa fico ainda mais revoltada com este país medíocre que protege poderosos e só destrói os mais pobres. Amo meu Brasil, mas é humilhante viver num país que tem esses valores, onde a vida das pessoas mais pobres não vale nada! Vou lutar para que o Estado do Acre pague por toda a humilhação e dor que nos fizeram passar. Depois, aí poderão dizer que a página negra virou. Por enquanto, não.
- Quanto você imagina que pode ganhar com isso?
Emanuela - Não pensei em valores ainda. Precisaria conversar com um advogado, o que ainda não fiz. O que sei é que se a família do Chico Mendes recebe, nos também temos esse direito, porque também fomos vítima de violência parecida, com duas vidas ceifadas, inclusive de um adolescente. Mas nunca procurei saber de valores nem como eles conseguiram obter esse direito. Mas vou descobrir. Isso tem que ser público.
- Como vocês vivem atualmente? Fale um pouco da situação de vocês, da sua mãe, do seu irmão e de você...
Emanuela - Bem, vivemos de forma humilde. Um pouco melhor do que quando tudo aquilo aconteceu e precisamos ficar na casa de parentes, dormindo no chão. Hoje, temos uma pequena casa. Eu, minha mãe e e meu irmão trabalhamos, mas sinto falta de uma assistência melhor à minha mãe e à minha avó. Ela tem problemas de saúde decorrentes daquele fatídico 30 de junho de 1996. Ela tem artrose e não anda mais. Há pouco tempo precisou de cadeira de rodas e não tínhamos como comprar. Sei que se meu pai estivesse aqui, isso não estaria acontecendo. Tenho uma bolsa de estudo e faço serviço social, com muito sacrifício. Meu irmão abandonou alguns sonhos e não completou nem o ensino fundamental. Trabalha com minha mãe em serviços gerais. Nossa vida é difícil, mas somos unidos e nos tratamos muito bem. Meu irmão, todos os dias, me manda mensagens de carinho, me chama de ‘meu amor’ e eu digo que o amo muito. Sempre choramos juntos. Éder idolatra meu pai. Eu sei que todos os seres humanos têm defeitos e meu pai certamente tinha também os dele, mas Éder o vê como um herói, o seu herói.
- Como é viver com medo? Vocês ainda tem medo?
Emanuela - Quem não viveria com medo depois de tudo que nós passamos? Mas, apesar de tudo, demos seguimento à nossa vida. Acho que o pessoal que matou meu pai e meu irmão não tem mais por que nos fazer mal porque nada temos acrescentar aos fatos. Como dissemos, inclusive no julgamento dos acusados, não vimos nada, não fizemos nada e não queremos saber de quem foi condenado ou não sobre o caso. Nada falaremos mais sobre eles. Por que essa gente ainda iria nos perseguir? Mataram meu pai e meu irmão para que eles dissessem onde estava o José Hugo. Pelo menos é isso que falam todas as reportagens sobre o assunto. Nós, o que restou da família, até hoje não sabemos de nada ao certo como foi e não fizemos mal a ninguém, nem eu nem minha família. Pelo contrário, nós é que sofremos toda a sorte de sofrimento e o que fizemos foi entregar tudo nas mãos de Deus.
Emanuela - Eu já falei e vou repetir: não tenho nada que falar sobre esse senhor. Ele foi julgado e condenado não pela minha família, mas pela Justiça. Se ele tem raiva ou não de alguém, não é problema nosso. Não queremos nada dele, não entraremos com ações contra ele. Queremos, isso sim, é entrar contra o Estado e o governo e peço a todos que nos respeitem, pelo nosso sofrimento e por tudo que passamos.