quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Quando a vítima é familiar de pessoa assassinada

A Constituição de 1988 prevê em seu artigo 245 uma lei que disporá especificamente sobre pessoas vitimadas, como transcrito abaixo:
"Artigo 245 - A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito."
Temos também, tratando sobre o tema, o Artigo 248 da Constituição Estadual; Os Itens 106,107 e 108 do Programa Estadual de Direitos Humanos; a Lei Federal 9.807 de 13/07/1999 e finalmente a Lei Estadual 10.354 de 25/08/1999.
Existem, há algum tempo, serviços públicos e privados de atendimento à criança vitimizada, à mulher vítima de violência, ao idoso e outros segmentos afetados. Trabalha-se, porém, centralmente, nesses casos, com o conceito de vítima direta da violência. O conceito de vítima indireta, secundária ou de vitimização difusa ocasionada pelo ato violento lesando uma família ou uma comunidade, é um conceito novo.
As famílias de vítimas de violência, em primeiro lugar, muitas vezes não se reconhecem como também vitimizadas pelo fato e desconhecem seus direitos ou os serviços que podem usufruir.
É comum, também, a tendência a "esquecer", "deixar de lado", "apagar da memória", como uma defesa imediata. O medo é um fator que dificulta a busca por direitos: este aparece como um fator nas falas das famílias afetadas que temem represálias do autor do crime, principalmente quando este não está preso. Ao medo, muitas vezes, acrescenta-se o descrédito da população na ação das instituições de contenção e distribuição de justiça.
Estas situações, de
luto por causa da violência, quando não trabalhadas e elaboradas podem reaparecer sob a forma de distúrbios: aquilo que foi silenciado, ressurge como revolta, sensação de impunidade e injustiça, doenças, desânimo, depressão.
O que fazer?
- Se você conhece alguma família afetada pela morte violenta de algum de seus membros, aproxime-se, converse, faça que perceba a necessidade de atendimento.
- Existem direitos que devem ser atendidos: procure as organizações públicas e privadas de defesa de direitos das vítimas.
Endereços úteis
CRAVI – Centro de Referência e Apoio à Vítima (SJDC, SADS, Procuradoria Geral do Estado)
Apoio social, psicológico e jurídico gratuito a familiares de vítimas de homicídio e latrocínio

Fone/Fax: 3666-7334; 3666-7778

'Ainda não me recuperei', diz filha da vítima do 'crime da motosserra

14/08/2015 06h00 - Atualizado em 14/08/2015 11h42

Tácita MunizDo G1 AC


Firmino foi esquartejado com motosserra em 1996, em Rio Branco. 
Após 19 anos, Emanuela diz que soltura de Hildebrando é 'frustrante'.

Tácita MunizDo G1 AC
Emanuela diz que ainda não conseguiu se recuperar da morte do pai (Foto: Emanuela Firmino/Arquivo pessoal)Emanuela diz que ainda não conseguiu se recuperar da morte do pai (Foto: Emanuela Firmino/Arquivo pessoal)
"Meu pai não pôde ver eu me formar na semana passada. Por muito tempo não pude sequer levar uma flor para o túmulo dele, porque foi enterrado como indigente na época. Depois de quase 20 anos, a gente ainda não se recuperou", disse. O desabafo é da assistente social, Emanuela Firmino, de 34 anos, sobre a morte do seu pai Agilson Santos Firmino e de seu irmão, então com 13 anos, Wilder Firmino, mortos em 1996, em Rio Branco, pelo grupo de extermínio que atuava no Acre na época, denominado Esquadrão da Morte.
O tema voltou a ser destaque no Acre nas últimas semanas, após a Justiça conceder ao ex-deputado Hildebrando Pascoal, acusado de liderar o grupo, a progressão de regime para o semiaberto. No dia 4 de agosto, Pascoal conseguiu o benefício, que foi cassado no mesmo dia.O mandado de segurança aguarda julgamento na Câmara Criminal de Rio Branco.
Por muito tempo não pude sequer levar uma flor para o túmulo do meu pai"
Emanuele Firmino, assistente social
Atualmente, Emanuela prefere manter o estado onde mora em sigilo. Ela também resguarda a sua imagem, da sua mãe e de seu irmão sobrevivente. No dia do crime, ela diz lembrar de tudo o que aconteceu e de como recebeu a notícia da morte de seu pai. Após ouvir no rádio sobre o crime, ela viu o corpo do seu pai machucado e com os membros serrados estampados em telejornais locais. O caso ficou conhecido como 'Crime da Motosserra'. 
Ela vive com a mãe Evanilda Firmino, de 59 anos, e um irmão de 32 anos. O crime ainda é um tema muito dolorido na família. "É complicado porque a gente perdeu tudo que tinha. Meu pai nunca foi bandido, sempre foi um homem de bem, só estava na hora errada, no momento errado e com a pessoa errada. E sem falar no meu irmão, que tinha 13 anos, e foi brutalmente assassinado com ácido", diz.
A família tinha chegado ao Acre havia cinco meses para tentar melhorar de vida. Firmino tinha aberto um restaurante de comidas típicas nordestinas e conheceu José Hugo, que visitava o restaurante da família diariamente. A filha conta que Firmino e José Hugo então criaram um laço de amizade. "O José Hugo era nordestino, então meu pai e ele ficaram muito amigos", diz.
Emanuela mostra uma das poucas fotos que restou do pai. Como o álbum ficou no Acre, as fotos são reproduções de outras fotos e têm a qualidade ruim (Foto: Emanuela Firmino/Arquivo pessoal)Emanuela mostra uma das poucas fotos que restou do
pai. Como o álbum ficou no Acre, as fotos são
reproduções de outras fotos e têm a qualidade ruim
(Foto: Emanuela Firmino/Arquivo pessoal)
Em 30 de junho de 1996, Itamar Pascoal, irmão de Hildebrando, foi morto com um tiro por José Hugo e Firmino teria presenciado a cena. Emanuela esclarece que o pai não teve envolvimento com o crime. "Meu pai sempre foi honesto, sempre trabalhou para manter a família. Ele não teve nada a ver com o assassinato, ele estava no lugar errado, na hora errada. Na época disseram que ele era bandido, mas meu pai tinha saído para levar o carro ao conserto, quando aconteceu tudo", explica.
A partir disso, Pascoal, que era coronel da PM, teria agido por vingança. Firmino então foi morto e esquartejado com uma motosserra. A família acredita que o filho do autônomo tenha sido morto após ter saído de casa. O corpo do adolescente foi encontrado queimado por ácido. Após os crimes, a família nunca mais voltou para a casa em Rio Branco e foi embora do Acre apenas com a roupa do corpo.
No dia do 'Crime da Motosserra', Emanuela diz que homens se identificaram como policiais e levaram primeiro sua mãe. "Disseram que meu pai foi pego bebendo e dirigindo e que estava na delegacia. Minha mãe foi, em seguida os policiais voltaram e disseram que ela estava pedindo que um filho fosse encontrá-la, eu disse que ia, mas disseram que mulher não podia. O Wilder então foi com eles", conta.
Depois disso, a filha disse que só viu os corpos do pai e do irmão pelos noticiários e iniciou uma verdadeira saga para sair do estado. "A gente não tem nem fotos do meu pai porque a gente saiu com a roupa do corpo. Minha mãe, que nunca tinha trabalhado, passou a trabalhar de doméstica para criar os dois filhos, porque quem trabalhava era meu pai. Ele nunca deixou faltar nada em casa. Quando vi o corpo do meu pai na TV, a imagem que mais me marcou é que ele estava machucado e sem os óculos que sempre usava", relembra.

Em 2010, após o julgamento, as ossadas de Firmino e do fillho foram mandadas para a cidade onde a família vive. "Eu falei que a gente não tinha nem como prestar homenagens para o meu pai, pelo menos agora podemos ir ao cemitério", diz. 
Sem o marido e sem o filho, Evanilda nunca passou por um acompanhamento psicológico. "Ela não teve esse apoio. Até hoje, todos os dias a minha mãe chora. Ela tenta mostrar que superou, mas quando ela não chora na nossa frente, a gente vê na fisionomia do rosto dela que estava chorando. É complicado, ela perdeu um filho, perdeu tudo", lamenta.
Emanuela tinha 15 anos e recorda que a última vez que viu o pai, foi um dia antes do crime, porque no dia em que tudo aconteceu ele teria saído bem cedo de casa e ela ainda dormia. "No dia anterior, ele estava bebendo em um bar perto de casa e fazia muito frio. Chegou em casa acordando a gente e desafiou que daria R$ 100 para quem fosse tomar banho de água gelada. Fui a única a ir, quando estava indo ao banheiro, ele me parou e disse que eu sempre devia lutar pelo o que queria. Em seguida, enrolou meus pés e disse: 'Tá vendo como é bom ter um pai?'", emociona-se.
Hildebrando Pascoal durante julgamento em 2009, em Rio Branco (Foto: Reprodução/Rede Amazônica Acre)Hildebrando Pascoal durante julgamento em 2009, em
Rio Branco (Foto: Reprodução/Rede Amazônica Acre)
Essa foi a última frase que a assistente social ouviu do pai e a última imagem dele vivo que ela guarda. "Hoje, tento ser essa guerreira que ele pediu que eu fosse. Amava meu pai, na verdade, o amo demais ainda", salienta.
A assistente social agora, após formada, sonha em criar uma ONG para dar apoio para vítimas de violência. Segundo ela, a organização daria apoio jurídico e psicológico para as vítimas de forma gratuita. "Agora queremos paz, nada mais", finaliza.
Possível progressão de regime para Hildebrando
Sobre a possível ida de Pascoal para o regime semiaberto, ela se diz leiga quando às leis, mas é categórica ao dizer que acha injusto.  "Eu me sinto frustrada como brasileira em ver alguém com mais de 100 anos de condenação ser solto. Se a Justiça acha que é correto, tudo bem, isso não vai influenciar em nada na nossa vida porque temos a consciência tranquila de que nunca fizemos mal a ele", destaca. 
Emanuele também aproveitou para esclarecer uma informação divulgada na época e que segundo ela, não era verdade. Firmino nunca teria sido mecânico e sim dono de restaurante. Ele levava o carro ao conserto quando teria presenciado o assassinato do irmão de Pascoal. "Houve uma confusão, falaram que ele era mecânico porque ele tinha ido em uma oficina, mas não tem nada a ver", afirma.
'Caso Motosserra'
Acusado de chefiar um grupo de extermínio no Acre, Pascoal cumpre pena em Rio Branco por tráfico, tentativa de homicídio e corrupção eleitoral. Em 2009, ele foi condenado pela morte de Agilson Firmino, o 'Baiano', caso que ficou conhecido popularmente como 'Crime da Motosserra'. As condenações todas somam mais de 100 anos. Desde 1999, Pascoal cumpre pena no presídio Antônio Amaro, em Rio Branco.