RIO BRANCO - A sala do tribunal do júri não é das menores: tem 14
metros por 8. Mas o teto rebaixado e as colunas aparentes passam a ideia
de que nos esprememos num porão. Além de jornalistas, os familiares do
acusado e das vítimas, vários curiosos e muitos estudantes de direito
lotam os 40 bancos de madeira. Há policiais por toda a volta.
Hildebrando continua impávido. Como de hábito, fita de cima a baixo
qualquer um que se aproxima. Com Evanilda não é diferente.
Beira o meio-dia em Rio Branco quando ela se senta em frente do juiz
Leandro Leri Gross para falar sobre o passado que esconde desde 1996.
Segunda testemunha a ser ouvida no julgamento do crime da motosserra, um
dos assassinatos mais brutais da década de 90 no Brasil, Evanilda entra
escoltada por policiais e por ovalados óculos escuros. Exibe pele
morena, anca de mulher brasileira e cabelos encaracolados amparados por
uma faixa rajada. A menos de dois metros do seu antebraço esquerdo está
Hildebrando, deputado cassado em 1999, o homem acusado de ter comandado a
operação criminosa de vingança familiar que resultou na morte do marido
e do filho dela. Encolhida na cadeira, como se quisesse fundir-se a
ela, a ex-cozinheira Evanilda se expressa com voz sôfrega. A impressão é
de que a lembrança da tragédia representa um novo perigo para ela e
para os dois filhos que sobreviveram.
Ainda assim, os detalhes do que aconteceu entre os dias 30 de junho e
10 de julho de 1996 brotam no tribunal. Era a hora do almoço daquele
último dia de junho quando o telejornal anuncia o assassinato do
subtenente da PM do Acre Itamar Pascoal. A baiana Evanilda, nova na
cidade, não sabia que Itamar era um dos nove irmãos do poderoso e temido
coronel Hildebrando. Já naquela ocasião, antes de ser eleito deputado
federal em 1998, Hildebrando estava sob investigação por liderar um
grupo de extermínio dentro da polícia batizado de "esquadrão da morte",
que o alçava a homem intocável pela Justiça. Ao grupo, o Ministério
Público Estadual atribuiu pelo menos 50 execuções cometidas entre as
décadas de 80 e 90. Muitas vítimas tinham um traço comum: a cabeça e as
mãos eram arrancadas do corpo. "Essa marca cumpria duas funções",
explica o procurador de Justiça Sammy Lopes, coordenador do grupo de
combate ao crime organizado no Acre. "Primeiro dificultar a
identificação dos corpos, impossibilitando exames de digitais e de
arcada dentária; depois passar a mensagem de que aquele crime não
deveria ser investigado."
TEMEROSA - Depois do crime, ela sumiu do mundo. Seu endereço de moradia e serviço são mantidos em sigilo para sua proteção e a dos filhos
Minutos antes da notícia da morte de Itamar, José Hugo chegou à casa
de Evanilda. "Ele pediu para usar o banheiro e depois perguntou se o
Agilson tinha deixado algum dinheiro para ele", relata a baiana, já sem o
escudo dos óculos. "Eu disse que não e ele saiu apressado." José Hugo
era um dono de caçambas que chegou a Rio Branco nos anos 80 fugido de
processos que enfrentava em Rondônia. Montou o negócio para remoção de
entulho em obras públicas, o que o aproximou de políticos. Foram as
obras da Rodovia AC-364, que liga Rio Branco à vizinha Sena Madureira e o
gosto pela comida baiana os pontos de aproximação entre Hugo e Agilson,
também conhecido como Baiano, a partir de abril de 1996. Com suas
caçambas locadas para as obras estaduais da estrada, o empresário passou
a comprar marmitas no restaurante de Baiano, que ficava ao lado da
rodoviária da cidade, com as portas viradas para a pista. À medida que o
asfalto evoluía, Hugo sentiu necessidade de um fornecedor de comida em
Sena Madureira, onde então passou a existir um grupo de trabalhadores
seu. Hugo propôs ajudar Baiano a viabilizar a transferência do
restaurante para lá e chegou a comprar comida para que ele cozinhasse.
Naquele dia 30, ambos iriam até a cidade vizinha fechar o aluguel do
local onde seria montado o novo restaurante. Num outro canto da cidade, o
subtenente Itamar Pascoal dava início aos fatos que atropelariam a vida
de Evanilda. O policial retira ilegalmente da cadeia o detento Gerson
Turino, condenado por tráfico, e ambos saem pela cidade à caça do homem
que recebera de Turino R$ 20 mil para viabilizar, por meio de sua
influência com um deputado estadual, um esquema penal "alternativo", no
qual o traficante poderia ficar fora durante o dia e passar apenas a
noite na prisão. Hugo, porém, usou o dinheiro na compra de um carro e
não cumpriu sua parte do acordo. O traficante, então, recorreu a Itamar,
que prometeu encontrar o golpista e recuperar o valor.
TEATRAL - Hildebrando olhou nos olhos dos jurados e se disse inocente
Pouco antes do horário do almoço, Itamar e Turino encontraram Hugo em
um posto de gasolina da cidade. No carro parado, ao volante, estava
Baiano. Após uma discussão entre o subtenente e Hugo, o policial
desferiu um tapa na cara do caçambeiro, que revidou dando um tiro na
cabeça de Itamar. O corpo do subtenente desabou. "Baiano estava com a
pessoa errada, na hora errada, no local errado", foi o jargão do
promotor Álvaro Pereira, que sustentou a tese aceita pelo corpo do júri
para condenar Hildebrando pelas barbaridades que aconteceriam nas horas
seguintes. "Após o assassinato de Itamar Pascoal imperou no Estado do
Acre a lei do talião e da vingança privada, sendo Agilson Santos
Firmino, o Baiano, uma das vítimas inocentes que tombaram frente à
nefasta ação criminosa de execução sumária capitaneada pelos acusados." A
descrição faz parte da denúncia oferecida pelo Ministério Público e
integra o primeiro dos 16 volumes do processo 001.99.010284-0, que
engloba mais de 15 mil páginas.
Evanilda teve certeza absoluta de que algo muito grave havia ocorrido
por volta das 19 horas daquele mesmo dia, quando seus filhos brincavam
na pequena varanda da casa e quatro homens chegaram mostrando uma foto.
"A senhora conhece esse homem?" Eram todos policiais, sem identificação
oficial. "Esse é o seu Hugo", lembra Evanilda, reconstituindo o passo a
passo para o tribunal. Os jurados, 7 homens escolhidos entre a lista de
25 intimados, não tiram os olhos da testemunha.
"Um deles disse que meu marido estava embriagado, que havia
acontecido um acidente com ele e que estava detido. Ele disse que
precisava de um filho meu para fazer companhia para ele", conta a
baiana, com a respiração entrecortada. "Eu disse não, meus filhos são
menores, eu vou com vocês." No caminho, quando perguntou o que estava
acontecendo, mandaram que calasse a boca. Apenas no quartel da PM ela
recebeu a notícia que a levaria ao inferno nas horas seguintes. "Um
policial veio e me disse: "Olha, houve um assassinato na cidade, que seu
Hugo cometeu; seu marido estava junto dele"."
Evanilda em nenhum momento contorce o pescoço na direção de
Hildebrando, que ouve seu depoimento sem esboçar reação. Ela treme como
se sofresse de Parkinson. Tem pânico, acima de tudo, dos homens de farda
da polícia do Acre. Quando aceitou voltar para a cidade onde prometera
nunca mais pisar, a família exigiu que entre seus seguranças não
houvesse policiais locais.
O choro interrompe o depoimento. "Quando me levaram de volta pra casa
no domingo, vi que o Wilder não estava e perguntei: "Cadê o Wilder?"
Minha filha respondeu: "Mainha, ele não está com a senhora?"" Os mesmos
homens que a levaram horas antes voltaram até o número 1400 da Rua Rio
Grande do Sul para buscar o filho de 13 anos. A filha, Emanuela, hoje
com 28, chegou a se oferecer, mas os policiais disseram que era melhor
levar Wilder porque havia muitos homens onde o pai estava. Durante toda a
madrugada e no dia seguinte, a mãe fez frustradas buscas pela cidade
procurando o filho. O marido, que saíra às 6h30 da manhã de domingo,
também não dera notícias.
Ela só ficou sabendo da morte de Baiano porque, de segunda para
terça, viu no noticiário do jornal que haviam encontrado um corpo
mutilado enrolado em pano preto. "Meu Deus, é o Wilder", pensou, já que o
marido saíra com uma roupa e o corpo que haviam encontrado estava com
outra. Decidiu que tinha de reconhecer o corpo. Chamou um vizinho, mas,
no caminho, um outro disse ser melhor procurar um lugar para ficar até
que ele entrasse em contato. "Dei o telefone para ele, fui para a casa
desse pessoal e fiquei aguardando. Duas horas de relógio depois apareceu
o rosto de Agilson na televisão", desaba Evanilda.
Baiano foi espancado (havia várias costelas quebradas), teve pernas,
braços e pênis amputados com uma motosserra e um facão (simulações
técnicas comprovaram o uso dos instrumentos), os olhos foram arrancados
(presume-se que ou foram removidos ou destruídos por tiros) e na testa
um prego foi enfiado. O laudo ainda constatou quatro perfurações de bala
(outras podem ter sido disparadas via orifícios naturais da cabeça).
Seu corpo foi enrolado em um saco preto e jogado na frente do principal
canal de televisão da capital. O filho, que nem sequer conhecia José
Hugo, também foi torturado antes de ser morto com três tiros na cabeça.
Os assassinos queriam informações sobre o paradeiro do assassino de
Itamar Pascoal e também vingar-se por seu pai ter acompanhado Hugo
naquele dia.
O promotor Álvaro Pereira, um dos três que fizeram parte da banca de
acusação do crime, está sentado ao lado do juiz. Com a mão na samarra
vermelha, pergunta a Evanilda se ela teve o direito de enterrar o corpo
do marido. "Não, não tive. Porque eu sentia medo que meus dois outros
filhos fossem sacrificados também. Eu não tive proteção nenhuma, como é
que eu iria brigar por um corpo, se eu não tinha nem condição de
enterrar?" Ela também não viu o corpo do filho.
A foto do menino Wilder que você vê nesta reportagem é a primeira
imagem que a mãe revê do filho nos últimos 13 anos, um retrato 3x4
entregue por ela à polícia dois dias depois de seu desaparecimento.
Evanilda saiu de avião do Acre com passagens compradas pela família dela
levando algumas roupas num saco preto de lixo. "Fiquei escondida por
oito dias na casa de um amigo pobre, dormindo com as crianças no chão."
Ela chegou a buscar apoio na Secretaria de Segurança. "Pedi proteção
para pegar meus pertences, pelo menos, e a única coisa que me disseram
foi: "A senhora não pegue nem roupa, se for possível mande seus filhos
na frente e vai depois"".
Entre o primeiro e o segundo dias do julgamento, Hildebrando requereu
o direito de fazer autodefesa, uma sustentação oral teatral, em que
usou um microfone auricular, gesticulou e mirou os olhos dos jurados
para se dizer inocente. "Sou um preso político, vítima da mais sórdida e
mentirosa campanha de desmoralização desse País." Para ele, as
acusações não passam de uma trama política que tem como autores seus
adversários. Ao final do discurso, afirmou que os verdadeiros assassinos
de baiano foram dois mortos: o policial e ex-vereador Alípio Ferreira e
o ex-deputado Carlos Airton. "Não seria desonra para mim se eu tivesse
praticado a morte do Baiano e chegasse aqui na frente e afirmasse:
"Matei esse bandido porque ele matou meu irmão". Não seria uma desonra",
insistiu.
Às 21h20 da quarta-feira, dia 23, o Tribunal do Júri do Acre condenou
a 18 anos de prisão Hildebrando Pascoal Nogueira Neto, de 57 anos. Ele
voltou para a cela de número 23 do presídio de segurança máxima Antonio
Amaro Alves, em Rio Branco. O ex-parlamentar está preso desde 1999
acusado de assassinatos, tráfico de drogas e formação de quadrilha e
ainda será julgado pelo morte de José Hugo, degolado no Piauí em janeiro
de 1997. Ao todo, somadas suas penas, ele deveria ficar 106 anos
recluso. Pela lei brasileira, cumprirá no máximo 30 anos.
Nos próximos dias, a Justiça do Acre julgará o assassinato do menino
Wilder. Evanilda e seus filhos, Emanuele e Eder, voltam ao banco das
testemunhas para tentar a condenação dos acusados. O governador do
Estado, Binho Marques (PT), afirmou que, após o julgamento do "crime da
motosserra", o Acre vira uma página negra de sua história. O filho Eder
vira a página do ressentimento. Até o julgamento dessa semana, ele
acreditava que o pai tivera participação no crime. Para Evanilda Lima de
Oliveira, não há calendário a transpor. O ano de 1996 e sua passagem
pelo Estado estão cravados em segredo na sua memória. Aos 53 anos de
idade, trabalhando em uma empresa de mão de obra terceirizada, ela parte
da capital acreana para um local incerto, em cidade não declarada, de
algum Estado deste país.
QUARTA, 23 DE SETEMBRO
Mãos e pés cortadosO júri
popular do Acre condena a 18 anos de prisão o ex-deputado e ex-coronel
da PM Hildebrando Pascoal Nogueira Neto por homicídio triplamente
qualificado no caso do "crime da motosserra", em que foi assassinado
brutalmente o mecânico Agilson dos Santos Firmino.