Entre o medo e o dever
Escrito por Tião Maia
27-Nov-2010
Como ficam os homens e mulheres que ajudaram a desmontar o esquadrão da morte diante da possibilidade de soltura de Hildebrando Pascoal? Alex, o segundo do bando, já está em liberdade
A aposentadoria, na beira da praia, como procurador de Justiça, poderia ser a realização de um sonho para quem trabalhou duro desde a infância. Poderia. Para Elizeu Buchmeier de Oliveira, prestes a completar 60 anos de idade, a aposentadoria não é sinônimo de sossego.
Ele mora em Florianópolis (SC). Não vive propriamente escondido, mas está longe de levar a vida de um aposentado comum. Mesmo na inatividade, ainda tem que cercar-se de alguns cuidados. Dificilmente sai de casa e, quando o faz, é para pescar, em alto mar. “É no mar que me sinto seguro. Em casa, onde fica minha família, mantenho cachorros treinados, mas é no mar que vivo realmente a sensação de liberdade”, conta Buchmeier, que escapou de pelo menos dois atentados, recebeu inúmeras ameaças de morte e conhece de perto o poder de fogo do bando que o levou a apressar a aposentadoria e ir embora do Acre em busca de proteção para si e a família.
Prestes a ganhar a liberdade, assim como já ganhou o sargento Alex, Hildebrando preocupa o procurador Elizeu: “Liberdade só no mar”
“Embora eu ainda mantenha casa em Rio Branco, ninguém da minha família quer saber de voltar ao Acre”, conta o barriga-verde nascido em Sobradinho, que foi trabalhador braçal até se transferir para Rio Branco, em 1978. Aqui, ele acumulava as atividades de mecânico de automóveis com as de estudante de Direito, e assim conseguiu realizar o sonho de tornar-se promotor de Justiça. Hoje tem dúvidas se tanto esforço valeu a pena. Afinal, para quem, mesmo aposentado, tem que cercar-se de cuidados, viver é sempre um risco.
Como promotor da comarca de Xapuri, no fim dos anos 80, Eliseu Buchmeier de Oliveira, ao lado do criminalista Márcio Thomaz Bastos (que viraria ministro da Justiça no primeiro mandato do presidente Lula), atuou na acusação que resultou na condenação, a 19 anos e meio de prisão, do fazendeiro Darli Alves da Silva e de seu filho Darcy Alves Pereira, pelo assassinato do líder sindical Chico Mendes. Foi em Xapuri, convivendo entre pistoleiros que andavam armados à luz do dia e acertavam preços de assassinatos na praça central da cidade, que o então promotor descobriu a existência de uma espécie de sindicato do crime em atuação no Acre. É a partir dessas informações que ele vai se tornar a autoridade a iniciar o processo que resultaria na queda do crime organizado que atuava no Estado e levou à cassação e prisão do deputado federal e coronel PM reformado Hildebrando Pascoal Nogueira Neto, apontado como chefe de um bando que, entre outras coisas, costumava decapitar e fatiar suas vítimas a golpes de motosserras.
Buchmeier tem sobejas razões para cercar-se de cuidado porque o homem que decidia quem deveria viver sob ou sobre o território acreano, mesmo cumprindo penas que podem superar os 100 anos de prisão, está próximo de deixar a cadeia. Ele deverá ser beneficiado pela carcomida legislação penal brasileira que prevê progressão de pena por bom comportamento mesmo para um dos homens que entrou para a história da crônica policial do país como um dos mais frios e violentos de que se tem notícia. Mais preocupante ainda porque o próprio Hildebrando disse, na semana passada, ao ser entrevistado pelo repórter Marcelo Rezende, da TV Record, que caso ganhe a liberdade, “muita gente vai fugir do Acre”, num claro sinal de que seu sentimento de vingança ainda é muito latente. “A cadeia faz quebrar a arrogância de muitos criminosos. No caso de Hildebrando Pascoal, isso não está acontecendo”, definiu o promotor Leandro Portela, da Vara do Tribunal do Júri, que atuou num dos julgamentos a que o ex-coronel foi submetido.
Uma autoridade que atuou na direção de presídios e que conhece bem os escaninhos das cadeias acreanas e o perfil de alguns dos criminosos enjaulados a partir da decisão de um grupo de pessoas que resolveu enfrentar o crime organizado que atuava no Estado definiu a entrevista e o perfil de Hildebrando Pascoal desta forma: “Duas coisas alimentam um homem na cadeia: o amor e ódio. No caso de Hildebrando, o que o alimenta é a possibilidade real e concreta de se vingar de seus inimigos”. Se isso for verdade, Elizeu Buchemeir e outros juízes e promotores teriam então muitas razões para se preocupar.
“O Hildebrando Pascoal é capaz de qualquer coisa”
O sinal amarelo sobre a liberdade de Hildebrando Pascoal foi dado na semana passada quando a juíza titular da Vara de Execuções Penais, Maha Kouzi Manasfi e Manasfi, mandou soltar o sargento PM Alex Fernandes Barros, condenado a 16 anos de prisão. Acusado de ser o principal colaborador de Hildebrando Pascoal, Barros, contra o qual recaem praticamente as mesmas acusações feitas a seu chefe, já passa o dia fora da prisão e volta à cadeia apenas para dormir, por decisão da polêmica juíza de origem libanesa.
Na semana passada, a liberdade de Alex, preso desde 1999, foi comemorada com um almoço em família no qual não faltaram cerveja e outras bebidas alcoólicas. Um parente de Alex confidenciou que o militar não bebeu. Para que o reeducando possa usufruir o regime semiaberto, a juíza Maha Kouzi Manasfi e Manasfi determinou que ele, por meio do defensor público, apresentasse o endereço atualizado.
A libertação de Hildebrando, preso também desde 1999, nos mesmos moldes de Alex Barros, está prevista para ocorrer em meados do ano que vem, quando o acusado completa 58 anos (faz aniversário no dia 17 de janeiro).
“Além de ser extremamente vingativo, o Hildebrando é político, e isso o torna mais perigoso ainda, pois de uma hora para outra pode se tornar muito forte”, diz o procurador aposentado Elizeu Buchmeier. “Na PM, onde ele tinha grande influência, como ex-coronel, seu poder acabou. Descobri, quando ainda estava em atividade, que os policiais são fiéis ao poder e não à pessoa. Mas o Hildebrando é capaz de qualquer coisa, pois mandou matar um policial civil depois de 14 anos só porque tivera uma desavença com seu irmão Itamar”, conta.
Mesmo com informações assim, Buchmeier diz não ter medo. “Se tivesse medo deles não os teria investigado, pois logo no início das investigações o Alex entrou na minha sala com cópia de uma representação contra mim, esfregou na minha cara e disse que eu iria saber quem era ele, dizendo que era bom eu desistir do que estava fazendo. Respondi para ele que aquela ameaça me fazia ainda mais valente, pois meu avô paterno sempre dizia que quanto maior o perigo mais valente precisamos ser”, disse Buchmeier.
Para o procurador aposentado, a liberdade que homens tão perigosos estão conquistando por força de lei, mesmo com o temor que isso possa causar, tem que ser respeitada. “Lamentavelmente, sob o aspecto legal, não é possível se fazer muita coisa, já que o Supremo decidiu que crime hediondo também tem progressão de pena”, disse Buchmeier. “O que me tranquiliza é que, uma vez soltos, esses criminosos sabem que, com qualquer deslize, o benefício acaba.”
De acordo com as acusações do Ministério Público nas quais Buchemeir tomou parte, o sargento Alex era uma espécie de lugar-tenente de Hildebrando Pascoal e subchefe nas operações do crime organizado ao qual é atribuída a autoria de quase uma centena de assassinatos ao longo de duas décadas de terror - a grande maioria das mortes com sinais horrorosos de mutilação.
“Mutilação era uma espécie de assinatura dos criminosos”, diz procurador
“As vítimas apareciam quase sempre sem cabeça, sem braços ou mãos”, conta o atual procurador-chefe do Ministério Público do Acre, Sammy Barbosa, um dos primeiros promotores de Justiça a auxiliar Buchmeier no combate ao crime organizado.
Na avaliação do procurador, a decapitação e mutilação dos cadáveres tinha duplo objetivo: dificultar a identificação das vítimas - e consequentemente dos assassinos - e também caracterizar, tamanha era a certeza da impunidade, a autoria dos crimes. “Como na lenda do Zorro, que assinava seus feitos com o ‘Z’ escrito a golpe de espada, a mutilação dos cadáveres era de fato uma assinatura. A assinatura do bando do Hildebrando”, afirma Sammy Barbosa.
Procurador-chefe do Ministério Público do Acre, Sammy Barbosa Nascido na periferia de Rio Branco em 1972 e formado em Direito 22 anos depois, o atual chefe do Ministério Público do Acre é um velho conhecido e inimigo dos criminosos do Acre. Seu batismo de fogo ocorreu no auge da atuação do crime organizado no Acre, durante o governo de Orleir Cameli e do qual Hildebrando Pascoal, então deputado estadual, era seu líder na Assembleia Legislativa. Na época, na cadeira hoje ocupada por Sammy Barbosa na chefia do Ministério Público estava sentada a procuradora Wanda Denir Nogueira, que vem a ser cunhada de Hildebrando e que teve seu nome cogitado como candidata do governo de Orleir à prefeitura de Rio Branco, pelo PFL (atual DEM), nas eleições de 1996. Coincidência ou não, Hildebrando Pascoal, que havia sido eleito o deputado estadual mais votado nas eleições de 1994, acalentava o sonho de, além da eleição da mulher de seu irmão Silas para a prefeitura da capital, ser indicado por Orleir Cameli à sucessão do governador nas eleições de 1998. Mas os sonhos de poder viraram pesadelos porque, no meio do caminho, surgiram Buchmeier, Sammy Barbosa e outros promotores como Patrícia Rego, Álvaro Pereira, Cosmo Lima de Souza, Edmar Monteiro Filho, Luiz Francisco de Souza e juízes como Denise Castelo Bonfim, Jair Facundes e Gercino José Silva Filho. Todos os que escreveram seus nomes na lista dos que ajudaram a tirar o Acre da condição de um Estado paralelo nas mãos de criminosos temem a liberdade dos homens que eles ajudaram a combater, como admite Sammy Barbosa, que conhece bem o tom das ameaças do bando que está prestes a voltar às ruas do Acre. “Na época, eu recebi uma carta dizendo que iam tocar fogo na minha casa com minha família dentro”, conta. Na época, casado com uma juíza de Direito, o então promotor já era pai de duas meninas, de seis e sete anos.
No caso de Buchmeier, aliás, não foi ameaça - foi atentado mesmo, por duas vezes. “A primeira tentativa foi na minha fazenda, que ficava entre Brasileia e Assis Brasil. Num sábado fui até lá e levei meu barco para pescar no rio Acre. À noite, o pessoal do Hildebrando foi até a sede da fazenda me procurar, mas como meu caseiro já tinha sido alertado, mandou que eles se retirassem. Minha sorte foi que eu estava pescando longe do local”, contou o procurador. “Outra tentativa ocorreu na estrada de Porto Acre, quando eu retornava de um Festival da Melancia. Na estrada, um carro velho ia à minha frente e uma moto com dois passageiros vinha atrás. Quando eu tentava ultrapassar, o carro me fechava. Daí eu desconfiei e então forcei a passagem. Segundo um dos passageiros da moto, o plano era esperar escurecer para então me executarem.”
A última tentativa contra o procurador, segundo ele próprio, ocorreu no semáforo da Avenida Ceará próximo ao Terminal Urbano. “Ali eles ficaram mais de uma semana me esperando. Entretanto, sempre tomei cuidado de não parar em semáforo, uma das importantes orientações do curso antissequestro que eu havia feito”, revelou.
“Se o Hildebrando me matar, terei uma morte bonita”
Em função da liberdade dos homens que ajudou a prender, Sammy Barbosa também não esconde suas preocupações. E não só com ele. “É claro que a gente pensa nos colegas”, revela.
O cargo, assim como a profissão de promotor de Justiça, caiu-lhe no colo como que por acaso. Logo após concluir o curso de Direito, Sammy Barbosa assumiu um cargo importante na hierarquia do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), mas, de alguma forma, sabia que não era exatamente aquilo que gostaria de ser pelo resto da carreira. “Um dia, durante uma chuva torrencial, eu estava pensando na vida, quando vi na TV uma espécie de quasímodo tentando subir num trator, com todo o sacrifício possível, a fim de tentar tirar o decalque de uma máquina para mostrar que, por baixo, havia a prova de que aquela máquina, como muitas outras, de fato pertencia à empresa privada do governador do Estado e que estava trabalhando em obras contratadas pelo governo de forma irregular”, conta o hoje procurador-geral de Justiça do Acre.
Luiz Francisco exibe o que restou de “Baiano”,
uma das vítimas de Hildebrando O “quasímodo” ao qual Sammy Barbosa se refere vem a ser o procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza, 48, que chegou ao Acre em junho de 1995 e em pouco mais de um ano infernizou a vida de Hildebrando e, de quebra, do então governador Orleir Cameli, acusado de uma série de crimes, entre as quais a de contratar máquinas de suas empresas para realizar obras de pavimentação da BR-317 e de encobrir a irregularidade com os decalques que Luiz Francisco tentar arrancar para mostrar o crime.
Nascido em Brasília, o procurador trazia no currículo a condição de ex-seminarista da Ordem dos Jesuítas, ex-bancário e ex-sindicalista, filiado e militante do PT, do que abriu mão apenas ao ingressar no Ministério Público Federal, em 1995. Sua primeira missão foi no Acre, aonde chegou trazendo na mala apenas dois ternos surrados, além do par de sapatos que calçava. Morava na própria sede do Ministério Público Federal e dali não se ausentava nem mesmo para fazer refeições, alimentando-se de lanches e de biscoitos, muitos biscoitos. Seu prato predileto era buscar provas contra Orleir e Hildebrando, como fazia naquele dia de chuva. Ao saber da possibilidade de liberdade de Hildebrando e seus homens, Luiz Francisco diz que não tem medo da morte. “Se acontecer alguma coisa comigo, terei uma morte muito bonita, sem o menor problema”, revelou.
Na época, 1996, como consequência das ações do excêntrico procurador no Acre, o governador Orleir Cameli, ao lado de deputados e senadores do Estado, vai a Brasília para uma audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Pede nada mais, nada menos que a cabeça do procurador da República que lhe infernizava a vida no Acre. Bronco, o governador que se jactava de só ter estudado até a quarta série do antigo primário e de mesmo assim ter-se tornado um dos homens mais ricos da Amazônia a ponto de também se eleger governador do Acre, achava que o procurador da República estava subordinado ao presidente. Seu pedido leva FHC, um dos intelectuais mais respeitados do mundo, ao incrível constrangimento de declarar o seguinte:
- Governador, me desculpe, mas não posso atendê-lo. A Constituição de 88 criou, com o Ministério Público, quase um Estado paralelo. Mesmo o presidente da República não pode fazer nada contra um membro do Ministério Público.
Ao ver aquele diálogo na TV, o bacharel em direito Sammy Barbosa, mesmo exercendo um cargo importante na direção do TRE, não teve dúvidas: - É isso o que vou ser! - disse, levantando-se da cadeira quase direto para a inscrição no concurso que o levaria ao Ministério Público Estadual.
Luiz Francisco, Buchmeier, delegados da Polícia Federal, juízes e outros promotores interessados em tirar o Acre da condição de Estado paralelo comandado por Orleir Cameli e Hildebrando Pascoal acabavam de ganhar um aliado. Um aliado destemido.
A mão pesada da juíza Denise Bonfim a leva a viver sob escolta policial
Depois de idas e vindas pelas comarcas do interior do Estado, ora punido, ora promovido, Sammy Barbosa vai parar na segunda vara criminal de Rio Branco, onde a juíza titular é Denise Castelo Bonfim, uma moça cuja determinação a levou a ser empregada doméstica nos Estados Unidos só para aprender a língua inglesa. É ali na segunda vara criminal - e não na vara do Tribunal do Júri Popular - que estão sendo arquivados os processos cujas vítimas apareciam sem cabeças, braços, pernas e outros membros. Processos arquivados sem autoria definida porque, se os cadáveres não falam, possíveis testemunhas, quando não eram assassinadas, faziam pacto de silêncio com os criminosos. Mas num dia de 1996, os criminosos cometem um erro: o cabo PM Alberto Paolino da Silva, um craque que tinha tudo para fazer carreira no futebol profissional, resolvera tentar a sorte nos gramados do crime como braço armado de Hildebrando Pascoal. Com ajuda de um comparsa de nome Rainey, assalta um traficante de drogas do bairro Tancredo Neves. Apesar de crivado de balas, o traficante sobrevive, reconhece seus algozes e depõe contra eles diante de Sammy Barbosa e de Denise Bonfim. A mão da juíza é pesada: Cabo Paolino e seu comparsa pegam 15 anos de prisão, em regime fechado. Mas é no decorrer da apuração do caso que o crime organizado vai mostrar sua face - ou melhor, sua voz - pela primeira vez.
magistrada que proferiu as primeiras condenações do bando foi também a primeira a ser ameaçada “Sua amiguinha vai morrer”, diz o comando do crime ao promotor Cosmo sobre Patrícia Rego
A promotora titular do caso é Patrícia de Amorim Rego. Formada em direito aos 19 anos, na atuação como promotora de Justiça ela ainda conserva os traços de menina, mas nem por isso é menos dura com os criminosos. Sua forma de falar, sem poupar adjetivos poucos elogiosos aos criminosos, parece irritar os comparsas ocultos dos bandidos em julgamento. É isso que demonstra uma voz no telefone do também promotor Cosmo Lima de Souza:
- Sua amiguinha é muito boçal, mas vai morrer. Ela e você, seu filho da p.!
Patrícia Rego, promotora de justiça ainda muito jovem, viveu o horror da ameaça de morte bem de perto e hoje acha que os novos promotores não devem se intimidarpor Os dois promotores são obrigados a abandonar o caso e passar uma boa temporada escondidos, longe Acre. É quando Sammy Barbosa entra no caso e ajuda a colocar Cabo Paolino e seu comparsa Rainey na cadeia. Sua fama de destemido o leva, certo dia, a ser convidado a uma reunião na sede da Superintendência da Polícia Federal, em Rio Branco. Ali, vários agentes e delegados que estavam no Acre investigando a existência de um esquadrão da morte a partir de denúncias do desembargador Gercino José da Silva ao Ministério da Justiça. De acordo com as denúncias, asseveradas pelo Conselho de Defesa da Pessoa Humana, órgão do Ministério da Justiça, na época, meados dos anos 90, o Acre era um campeão de assassinatos: 130 casos por ano, quando a média nacional para assassinatos daquela natureza era de 64,5 para cada grupo de 100 mil pessoas. “Segundas-feiras era dia de contar mortos”, diria o então governador Jorge Viana logo após tomar posse e passar a apoiar as instituições interessadas na queda do esquadrão da morte. É para isso que Sammy Barbosa vai àquela reunião na Polícia Federal. Delegados e agentes federais queriam saber se o jovem promotor assinaria uma denúncia contra o sargento Alex Fernandes Barros e o ex-soldado PM Ronaldo Romero. Ele assina. Os dois são acusados de terem invadido a casa de José Hugo Alves Júnior, o “Huguinho”, em 1996, e de ter saqueado todos os seus bens, inclusive uma caçamba e um Gol. A casa foi saqueada durante a caçada a “Huguinho”, que era acusado de ter matado, no dia 30 de junho de 1996, durante um bate-boca no Posto Parati, o vereador e sargento PM reformado Itamar Pascoal, irmão mais novo de Hildebrando. Após essa morte, que culminou com a detenção e execução do mecânico Agilson Firmino dos Santos, o “Baiano”, que estava com Hugo na hora do crime contra Itamar, e de seu filho Wilder, 15, o Acre nunca mais foi o mesmo. De acordo com os promotores e juízes que atuaram no caso, foi aí que Hildebrando e seus pistoleiros, que atuavam nas sombras, tiveram que mostrar a cara. E eles não se intimidaram a ponto de saquearam os bens de um homem marcado para morrer e que de fato seria assassinado, no Natal de 1997, na fronteira do Piauí com a Bahia. A acusação contra Alex e Ronaldo Romero também incluía o delegado de polícia civil Carlos Bayma, do 6° Distrito Policial, acusado de ser um velho colaborador de Hildebrando. Presos, o delegado e um comparsa têm conversas interceptadas pela Polícia Federal acertando, como vingança, a execução de Sammy Barbosa. A morte seria cruel: sua casa (localizada então no Conjunto Procon) deveria pegar fogo, com toda a família dentro, incluindo as filhas pequenas, com o despiste de um acidente. Posteriormente, o delegado Bayma negou a articulação do crime e está de volta à ativa.
Sammy Barbosa, embora mais calejado, mantém a mesma postura de mais uma década atrás, mas não esconde que viveu com muito medo. “Minhas filhas não tiveram infância”, lamenta. “Até hoje a gente tem que se cuidar”, admite.
A verdade é que, embora não demonstrem de forma explícita, todos os que atuaram no combate ao crime organizado revelam preocupação ao saberem que podem, mais dia ou menos dia, dar de cara nas ruas com os homens que eles ajudaram a prender.
“É coisa do ofício. Eu tenho medo, sim, mas não vou viver escondida. Faz parte do ofício. Quem entra no Ministério Público tem que saber que enfrentar bandidos e o crime é o nosso ofício”, diz Patrícia Rego, aquela que se alimenta das palavras de Nelson Mandela sobre o medo.
Gercino, o homem cuja vida não vale nada
“Eu dispensei a segurança recentemente, e não sei se, como consequência disso, vou pedir de novo quando esse pessoal estiver solto. No momento, o que me conforta é minha confiança em Deus”, diz a juíza Denise Castelo Bonfim, aquela que assinou as primeiras sentenças contra o bando de Hildebrando e, portanto, foi a primeira a sofrer ameaças.
Desembargador aposentado Gercino José da Silva Filho De todos aqueles homens e mulheres que enfrentaram o crime organizado que atuava no Acre, o caso mais emblemático é o do desembargador aposentado Gercino José da Silva Filho, apontado pelo próprio Hildebrando como seu desafeto e a quem o ex-deputado ameaçou matar no meio da rua. Ouvidor agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o ex-desembargador vive em Brasília, mas percorre o país ajudando a resolver conflitos de terra. Para onde ele vai, um séquito de agentes federais o segue para protegê-lo. E não é por acaso: embora o desembargador se negue a conceder entrevistas sobre o assunto, em Brasília circulam informações de que os votos de assassinato de Gercino foram renovados durante o carnaval de 2008, durante um velório. O morto era o dentista Sete Pascoal, irmão mais moço de Hildebrando, que morrera num acidente automobilístico quando cumpria pena em regime semiaberto acusado de cúmplice do irmão nos mais diversos crimes. Nos poucos instantes em que esteve em liberdade para as exéquias do irmão, Hildebrando Pascoal teria sido pilhado em conversas com aliados acertando a morte de vários desafetos, entre os quais Gercino José da Silva Filho, um homem cuja vida não vale nada.